Quando falamos em Legionella instala-se a confusão. A Legionella está associada à água e não ao ar. Deveria existir legislação própria mas a boa notícia está no eventual regresso das auditorias. As boas práticas do lado do projecto e da manutenção seriam suficientes para prevenir o seu desenvolvimento.
Quando falamos em Legionella, disparam logo uma série de campainhas e instala-se a confusão. Não é para menos. A mortalidade ronda os 10 % nos últimos surtos que tivemos. É, de facto, um problema de saúde pública e, por si só, um motivo de alarme. O problema é quando começamos a falar no tema, no que é a Legionella, como aparece e como deve ser prevenida nos edifícios, sejam eles quais forem. Os equívocos e as dúvidas abrem espaço para tudo e mais alguma coisa. Desinformação, falta de conhecimento, notícias pouco claras, aproveitamento comercial, etc. Corre-se sempre o risco de o rigor ficar pelo caminho quando avançamos para propostas de lei e para a criação de grupos de trabalho com o objectivo de legislar sobre este assunto. É nesta fase que nos encontramos. Tudo indica que, neste mês de Janeiro, o Executivo avance com novas regras para o controlo da qualidade do ar. Daquilo que foi tornado público, poderão ser dois diplomas, nos quais o tema da Legionella terá contornos específicos e as auditorias à Qualidade do Ar Interior (QAI) nos edifícios irão voltar e passar, porventura, a ter prazos mais curtos consoante o tipo, dimensão e o grau de risco associado aos seus utilizadores. No segundo caso, o tema estará no Ministério da Economia, onde vai ser criado um grupo de trabalho informal. Segundo comunicações recentes, para além de repor regras e eventualmente ajustar procedimentos, a fiscalização por via de um sistema sancionatório será revista e terá mão pesada. É esta a expectativa que os governantes estão a deixar. Uma boa notícia para começar o ano.
Mas vamos ao resto. Com este trabalho, procuramos informar sobre o problema e enquadrá-lo naquilo que são as suas actividades transversais e que a nós dizem respeito. Ou seja, que dizem respeito aos edifícios e aos seus sistemas de climatização. De facto, conceitos e competências são algumas das dificuldades quando tentamos interpretar um problema antigo que, com o passar dos anos, continua a agitar uma série de áreas profissionais. Transversal a vários domínios, a Legionella toca na responsabilidade do próprio Estado como garante do bem-estar das pessoas e em várias empresas e profissionais que operam nos edifícios e estão diluídas num conjunto de processos que vão desde a concepção e construção à manutenção e à fiscalização.
Laboratórios INSA
Ficamos preocupados com o que dizem algumas entidades e associações. Basta entrarmos em alguns sites de associações ambientalistas ou ler as propostas de lei de alguns partidos da Assembleia da República. No entanto, os dois diplomas do Bloco de Esquerda (aprovados) são os mais interessantes. São propostas, ainda, que estabelecem a obrigatoriedade das auditorias aos sistemas com eventuais impactos na qualidade do ar exterior, em particular à pesquisa de presença de colónias de Legionella, e separam este documento daquilo que tem a ver com a qualidade do ar interior e que remete para o DL 118/2013. Neste caso, a segunda proposta do BE procura recuperar a obrigatoriedade de auditorias à QAI. Um bom ponto de partida: distinguir aquilo que é o problema da Legionella, daquilo que são as auditorias à qualidade do ar interior.
*Dados provenientes de análises laboratoriais efetuadas pelo INSA Lisboa e Porto no âmbito da vigilância epidemiológica e análises de rotina.
Equívocos
Comecemos, então, justamente por este ponto ou por este primeiro equívoco. “A qualidade do ar interior ou exterior não têm nada a ver com a Legionella, embora a doença se transmita por via aérea. Mas o ar é apenas um veículo. A Legionella está associada à água e a preocupação no controlo e prevenção deve ser por via da água e posterior aerossolização”, explica-nos Helena Rebelo, coordenadora do departamento de Saúde Ambiental do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (ver pág. 20). E, por isso, quando se fala em legislação, esta deve ser tratada em sede própria. “Considero recomendável haver uma legislação específica para a Legionella… A Legionella está associada à água. Pode aparecer no ar, mas só aparece no ar porque existe água”. Esta primeira nota é extremamente importante, se pensarmos no negócio à volta da detecção da Legionella. Nas tecnologias disponíveis, nas empresas e laboratórios existentes. Se quisermos identificar a fonte de contaminação, conhecer a estirpe e as características das bactérias para aplicar as medidas correctivas necessárias, temos de actuar na águas onde devem ser feitas as recolhas e posterior análise.
Depois dos inúmeros surtos em Espanha, o governo espanhol avançou com legislação específica. Espanha tem um decreto lei, uma norma técnica e obriga os técnicos de manutenção a frequentar, a cada cinco anos, um curso de 10 horas para a manutenção higiénico-sanitária de instalações com risco de Legionella.
Laboratórios INSA
507
foi o número total de amostras analisadas pelo INSA em 2013. O número subiu para 1877 em 2016.
O foco deverá estar nos cuidados que devemos ter para que ela não se desenvolva e se propague. Recorde-se que, actualmente e no âmbito do SCE, os edifícios existentes devem cumprir os parâmetros de referência da QAI e Legionella constantes na Portaria n.º 353 A, na qual o número de unidades formadoras de colónias por litro de água não deverá ser superior a 100 para todas as espécies de Legionella. Nas torres de arrefecimento, este número dispara para 1000 e a estirpe Pneumophilla não deve existir em nenhuma quantidade – uma novidade da revisão regulamentar de 2013, porque, até aí, esta era permitida. A Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) foi nomeada como a entidade para actuar na fiscalização desse cumprimento. Aqui são só definidos valores de referência, mas não há qualquer metodologia ou estratégia para lá chegar. Para as unidades de saúde, existem notas técnicas para o efeito pela especificidade das funções destes edifícios. A 15 de Novembro último e tendo em conta “que existem múltiplos documentos técnicos dispersos, orientadores das acções das instituições prestadoras de cuidados de saúde, em matéria de prevenção e controlo ambiental da bactéria Legionella, importa agrupá-los em documento único de forma a facilitar a sua abordagem nas unidades prestadoras de cuidados do sistema de saúde”. É neste contexto que é emitida uma nova “Norma” conjunta para as unidades de saúde.
Porém, para os restantes edifícios é o vazio legal. Com a anterior legislação, a detecção da Legionella estava inserida nas auditorias à QAI e a sua periodicidade estava definida de acordo com a tipologia dos edifícios: a cada dois anos, no caso de edifícios ou locais que funcionem como estabelecimentos de ensino ou de qualquer tipo de formação, desportivos e centros de lazer, creches, infantários ou instituições e estabelecimentos para permanência de crianças, centros de idosos, lares e equiparados, hospitais, clínicas e similares; de três em três anos, no caso de edifícios ou locais que alberguem actividades comerciais, de serviços, de turismo, de transportes, de actividades culturais, escritórios e similares; de seis em sei anos para os restantes edifícios, quando abrangidos pelo RSECE. Nos edifícios em que existissem Torres de Arrefecimento, Sistemas de Água Quente Sanitária ou outros sistemas de produção de aerossóis, também se fazia a pesquisa da Legionella. Esta obrigatoriedade estava enquadrada nas “Perguntas e Respostas”, que funcionavam como um “despacho” da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e da Agência Portuguesa para o Ambiente (APA).
EQUÍVOCO
a maior parte dos sistemas de ar condicionado não possui qualquer componente (humidificadores por pulverização) que possa produzir aerossóis
Entendemos a necessidade de existir uma legislação específica para a Legionella no caso dos edifícios das unidades de saúde, mas essa necessidade existe igualmente para os restantes edifícios de serviços. Um quadro legal que englobe um conjunto de metodologias, procedimentos, competências e rigor. Não nos podemos esquecer, como sublinha a responsável do Instituto Ricardo Jorge, que “as análises constituem apenas a evidência de que o plano de manutenção está, ou não, adequado à situação em causa. Se os procedimentos de manutenção forem cumpridos, supostamente não irá haver condições propícias para o desenvolvimento da Legionella em concentrações que possam vir a constituir um risco”. É que o problema da Legionella está directamente ligado aos cuidados que temos ou não temos nos nossos edifícios. E esta é uma conclusão que temos de assumir e actuar em conformidade, quer do lado do legislador, quer do lado das boas práticas. Desde a concepção à monitorização e ao rigoroso cumprimento de um plano de manutenção que tem e deve existir sempre. Dificilmente teremos casos ou surtos de Legionella se todos os procedimentos forem seguidos.
A LEGIONELLA
- É uma bactéria que vive em rios, lagos e outros meios aquáticos naturais e artificiais construídos ou manipulados pelo homem. As bactérias do género Legionella encontram-se em ambientes aquáticos naturais e também em sistemas artificiais, como redes de abastecimento/distribuição de água, redes prediais de água quente e água fria, ar condicionado e sistemas de arrefecimento (torres de refrigeração, condensadores evaporativos e humidificadores) existentes em edifícios, nomeadamente em hotéis, termas, centros comerciais e hospitais. Surgem ainda em fontes ornamentais e tanques recreativos, como por exemplo Jacuzzis;
- A exposição a esta bactéria pode provocar uma infecção respiratória, actualmente conhecida por Doença dos Legionários, assim chamada porque após a Convenção da Legião Americana em 1976, no hotel Bellevue Stratford, Filadélfia, 34 participantes morreram e 221 adoeceram com pneumonia;
- A infecção transmite-se por inalação de gotículas de vapor de água contaminada, aerossóis, de dimensões tão pequenas que veiculam a bactéria para os pulmões, possibilitando a sua deposição nos alvéolos pulmonares;
- A ingestão da bactéria não provoca infecção, nem se verifica o contágio de pessoa para pessoa. A doença atinge em especial adultos, entre os 40 e 70 anos de idade, com maior incidência nos homens;
- Existem 50 espécies e 70 serogrupos distintos;
- Pelo menos 20 espécies de Legionella estão associadas a doenças no ser humano, como, por exemplo, Legionella micdadei, L. bozemanii, L. dumoffii, e L. longbeachae;
- Legionella pneumophila (16 serogrupos) é responsável por 70 a 90 % das infecções no homem.
Os edifícios são um mundo de sistemas e tecnologias. E essa realidade nem sempre é entendida, o que faz com que surja o maior equívoco. Ao contrário do que se apregoa, a Legionella não é uma bactéria do ar condicionado! Esta frase foi uma capa da nossa revista em 2002. Passados 15 anos, esta mensagem ainda não passou e ainda sentimos a necessidade de explicar a deputados, governantes e aos media generalistas que a Legionella não é um problema do AVAC, mas sim de todos os sistemas que produzem aerossóis, quer eles estejam integrados em sistemas de climatização, quer em fontes decorativas, rega por aspersão ou chuveiros de água quente sanitária (AQS). Basta ver a causa que consta nos relatórios dos últimos surtos, como o de Vila Franca de Xira. Este facto recente está ligado a torres de arrefecimento, que não estão associadas a qualquer sistema de climatização, mas sim a um processo industrial.
EM 2015
a Legionella terá infectado mais de 7 mil pessoas na Europa. É o valor mais alto desde que há registo. Por cá, entre 2005 e 2015, a mesma doença matou 100 pessoas.
O Instituto Ricardo Jorge é a entidade responsável pela gestão destes surtos e pelo acompanhamento de milhares de outras pesquisas (ver quadro) em contexto de manutenção e vigilância. “Os sistemas de climatização que não envolvam água não têm qualquer risco. A Legionella está na água e, portanto, não havendo água, não há Legionella. Com base na nossa experiência e em pesquisas pelo mundo inteiro, verificamos que, de facto, os maiores surtos estão associados a torres de arrefecimento. Em hospitais, fábricas… Porque é uma fonte privilegiada para a difusão de aerossóis. Normalmente, os casos de doença associados, por exemplo, a AQS são isolados e em número mais reduzido”, esclarece Helena Rebelo.
DECRETO-LEI 79/2006 ARTIGO 29.º – REQUISITOS DE QUALIDADE DO AR INTERIOR
“Em edifícios com sistemas de climatização em que haja produção de aerossóis, nomeadamente onde haja torres de arrefecimento ou humidificadores por água líquida, ou com sistemas de água quente para chuveiros onde a temperatura de armazenamento seja inferior a 60o C as auditorias da QAI incluem também a pesquisa da presença de colónias de Legionella em amostras de água recolhidas nos locais de maior risco, nomeadamente tanques das torres de arrefecimento, depósitos de água quente e tabuleiros de condensação, não devendo ser excedido um número superior a 100 UFC”.
A Legionella, as torres de arrefecimento e o AVAC
Importa, todavia, começar a falar de torres de arrefecimento, que existem para dissipar o calor resultante de processos industriais ou do arrefecimento de espaços climatizados dos edifícios. O primeiro caso não nos diz respeito e esteve na origem do surto de Vila Franca de Xira, mas o segundo, sim, quando as integramos em algumas instalações de chillers. Ultimamente, são mais utilizados os chillers com condensação por ar, o que, para além da vantagem económica – menor custo inicial e de manutenção –, traz também a vantagem de excluir o risco da Legionella. Isto, para além de existirem poucas torres de arrefecimento no nosso país. Por outro lado, a maior parte dos sistemas de ar condicionado instalados não possui qualquer componente (humidificadores por pulverização) que possa produzir aerossóis – hoje, a humidificação do ar nas unidades de tratamento de ar é feita através da injecção de vapor.
Laboratórios INSA
As torres funcionam normalmente entre 30 a 35º C, uma temperatura óptima para o desenvolvimento de bactérias. Por este motivo é importante não só o controlo da água, mas também a monitorização do estado dos seus componentes, nomeadamente separadores de gotas e meios de preenchimento. Por outro lado, importa não localizar tomadas de ar novo e janelas junto das torres de arrefecimento – uma boa prática é distanciá-las das torres, pelo menos, 7,5 metros.
Para além das torres de arrefecimento e dos condensadores evaporativos, existem ainda outros componentes susceptíveis de poderem ser responsáveis pelo desenvolvimento e propagação da bactéria. Nomeadamente, os lavadores de ar e os humidificadores por pulverização. Acontece que, como já se referiu, estes componentes raramente são utilizados no nosso país e, mesmo fora, estão em acelerado desuso.
PREVENÇÃO
é a principal mensagem. Não basta legislar. Temos de ter tarefas definidas para o terreno e um conjunto de boas práticas a montante que se revejam num plano de manutenção eficaz.
Manutenção
Claro que isto não chega. Do nosso lado, temos de nos precaver para que a bactéria não encontre as condições ideais para se desenvolver. É aqui que entram outras competências ao nível do projecto, instalação e manutenção dos sistemas. O rigor e a responsabilidade volta a ser a pedra de toque. Por agora, não temos metodologias, mas parece que vamos voltar a ter. No entanto, promotores e empresas sabem que a manutenção é muito mais do que a prevenção de avarias. Independentemente da dimensão dos edifícios ou da complexidade das instalações, a correcta manutenção das instalações e equipamentos contribui para o desempenho e eficiência energética. Não menos importante, contribui para o conforto e saúde dos seus ocupantes. Se tivermos um adequado plano de manutenção, reduzem-se os riscos praticamente a zero.
Temos, sim, de voltar a olhar para todas as actividades do edifício e recuperar as boas práticas. De todas. Desde a concepção, à manutenção. A qualidade do ambiente interior depende de uma eficaz fiscalização e veja-se o mau caminho que se fez nos últimos anos desde que as auditorias deixaram de ser obrigatórias.
A principal mensagem tem um nome: prevenção. Não basta legislar. Temos de ter tarefas definidas para o terreno e um conjunto de boas práticas a montante que se revejam num plano de manutenção eficaz. Seria desejável que os métodos de detecção rápida e eficazes fossem uma prática também utilizada na própria manutenção dos sistemas. Seria também desejável que o pessoal técnico envolvido nestes processos tivesse a sensibilidade, a formação e as competências necessárias, nomeadamente para prever outras doenças associadas para além da Legionella. Não menos importante, seria legislar sobre a utilização de produtos químicos necessários e adequados aos sistemas.
INSTITUTO RICARDO JORGE
A investigação microbiológica, clínica e ambiental, da Doença dos Legionários é conduzida com três objectivos fundamentais. Em primeiro lugar, identificar a bactéria em casos de doença humana que permita estabelecer o diagnóstico e, desta forma, contribuir para a adopção de um esquema terapêutico adequado. Paralelamente, identificar a presença da bactéria no ambiente, permitindo a adopção de medidas de controlo e prevenção da sua proliferação. E, por fim, conjugando os dados da microbiologia clínica e ambiental, identificar ligações epidemiológicas entre os casos de doença humana e potenciais fontes ambientais de transmissão, o que contribui para a implementação de medidas adequadas de controlo e/ou prevenção dessa transmissão.
A cultura de amostras clínicas e ambientais segue metodologias não muito diferentes. Uma porção da amostra é inoculada num meio sólido em placa de Petri, que tem na sua composição nutrientes e factores de crescimento para a bactéria Legionella e tem também antibióticos que inibem a maior parte dos outros géneros bacterianos eventualmente presentes. No caso de amostras humanas a inoculação é directa, no caso de água de fontes ambientais faz-se uma prévia concentração através de uma técnica de filtração ou de centrifugação. A cultura permanece em incubação durante dois a dez dias, durante os quais se avalia o aparecimento de colónias caracteristicamente com a aparência de vidro martelado.
Na presença de colónias suspeitas, faz-se a confirmação de Legionella pneumophila e de outras espécies de Legionella também implicadas em doença humana, com uma técnica de pesquisa e caracterização de antigénios da parede bacteriana. O método cultural é moroso e não é possível fazer o isolamento da bactéria depois de o doente ter iniciado terapêutica antibiótica. Por estas razões, podemos fazer a pesquisa de DNA de Legionella pneumophila por PCR directamente das amostras clínicas e, quando presente, procede-se à sua caracterização genómica. Esta caracterização genómica também é feita em culturas obtidas a partir de amostras ambientais. A caracterização genómica mais completa é conseguida com a sequenciação do genoma completo, possível de realizar somente a partir de culturas positivas. A análise dos dados de caracterização das estirpes clínicas e ambientais contribuem, então, para os estudos epidemiológicos.